Um almoço nu e cru junto a realidade que não conhecemos

smoke-1031060_1920

A sensação nua e crua de ter o estômago socado com força. Essa é a principal reação que a leitura de O Almoço Nu, de William S. Burroughs, suscita naqueles que se aventuram desavisadamente por sua mais famosa obra.

Burroughs é um dos grandes autores que compõe a Geração Beat, movimento de artistas boêmios surgido no final da década de 1950, que valorizava o prazer pelo prazer, que cultivavam a criatividade espontânea e celebravam o fato de não se enquadrarem nas normas sociais impostas no período.

O romance não é linear e não possui um enredo definido, com uma cadência de acontecimentos. A ação transcorre em forma de mini narrativas, que vão apresentar em sua maioria a ótica do personagem William Lee e suas viagens, no sentido físico e figurado, que nos trazem as vivências de viciados em drogas, delírios, paranoias, sadismo e relações homoafetivas.

Uma viagem sem volta pelas sensações despertadas no organismo de um usuário de cocaína, o caos mental instaurado pela ausência da droga e a busca frenética e alucinante pelo componente que aplaca o vício. Relatos de relações sexuais que permeiam o sadomasoquismo e orgias regadas a entorpecentes. Esses são alguns dos cenários em que se encontram os muitos personagens dessa trama não costurada.

A obra se tornou um dos romances mais importantes do nosso tempo e redefiniu a literatura e a cultura americana. As narrativas se inspiram na vida do próprio Burroughs, que por muito tempo foi usuário de diversas drogas e algumas viagens que fez pelo México, Tânger e Estados Unidos.

Minha experiência com a narrativa não foi das melhores. Não sendo uma grande conhecedora do autor, do movimento ou mesmo das vivências abordadas, me vejo compelida a recolher-me a minha visão de mundo suburbana e tento de forma insatisfatória compreender a mente fragmentada de um dependente químico.

Em minhas aventuras literárias por autores com temáticas underground, admito, o mais longe que já fui se limita ao velhinho safado, também conhecido como Charles Bukowski, em um de seus romances nem tão safados assim. Kerouac e seu On the Road constam da minha lista mental de leituras obrigatórias da vida, mas ainda não tivemos a oportunidade de nos cruzar nessa estrada.

De volta ao almoço, sua narrativa emblemática ainda rendeu um filme, de gosto duvidoso e fama ao revés, de 1991, corajosamente dirigido por David Cronenberg, conhecido no Brasil como “Mistérios e Paixões”. A película é uma relíquia cult dos anos 1990, que já tive o prazer de assistir, e cujo enredo não sobreviveu ao crivo do tempo em minha mente, mas que encontrei à venda despretensiosamente na bancada de DVD’s das Lojas Americanas em um shopping de baixa circulação aqui da cidade. Quem efetua a distribuição desses catálogos nas unidades da loja, é coisa que me pergunto até agora.

Sendo uma obra tão marcante para a história da literatura americana, é de se questionar porque demoraram cerca de 10 anos para reeditar o romance no Brasil. Anteriormente publicado pela finada Ediouro, hoje se apresenta sob o guarda-chuva da Companhia das Letras, que pretende republicar o trabalho do autor.

Os temas do romance podem parecer triviais hoje em dia, mas em 1957, ano do lançamento, o livro causou muito incômodo, a ponto do próprio autor lançá-lo através de um pseudônimo, para não comprometer o nome de sua família. Apesar de não ter simpatizado, acredito, obviamente, que vale a aventura.

[No Menu] – Acontecimentos na irrealidade imediata

maze-2086013_1280

Sentar para desvendar as páginas desse livro, admito, foi uma completa aventura. Um conteúdo que nos leva, efetivamente, do nada para lugar nenhum.

Acompanhamos o desenvolvimento desse personagem, sua infância e adolescência, permeada por um alto índice de sensibilidade. Em alguns momentos carregada de sexualidade, mas essa fica em segundo plano quando nos deparamos com os longos diálogos internos do protagonista.

Vemos um jovem, que em determinados momentos gostaria de se encaixar nos moldes da sociedade em que vive, e em outra ocasião aceita sua reclusão e aprende a gostar da solidão.

Ao longo da narrativa, nosso personagem sem nome vive diversas experiências e momentos de epifania, com descrições poéticas e tentativas de fuga da realidade. Tudo para tentar elucidar a questão primordial da existência: qual nosso objetivo? E com tais questionamentos, na narrativa o jovem é tido como um alguém mentalmente instável, beirando a total insanidade. E por vezes, sua atitude chega a nos confundir, como quando ele persegue uma mulher até em casa e prostra-se rezando em seu jardim.

A própria sinopse do livro o descreve como um texto experimental e de certa forma, ele o é. Pois não temos uma história linear e não atingimos um objetivo final. A questão permanece insolúvel, mas foi um grato deleite deslizar sobre essas páginas. Talvez saber que o autor faleceu tão jovem, com 29 anos, vítima de uma doença, agregue certa aura a obra. Mas é pela capacidade de suscitar questionamentos pouco usuais que se encontra a magia do texto desenvolvido. Vale a tentativa de degustar.

O livro: Acontecimentos na irrealidade imediata, de Max Blecher.

 

[No Menu] – Os Reis

statue-1418915_1280

Cortázar recria o conto do Minotauro nessa pequena peça, com 82 páginas, e aborda os aspectos mais intrínsecos da natureza humana na construção de seus personagens.

Relembrando a história tradicional, o Rei Minos foi punido por Poseidon, que fez com que a esposa do Rei se apaixonasse e engravidasse de um touro, dando à luz a criatura conhecida como Minotauro. Na mitologia e na releitura de Cortázar, Minos oferece jovens atenienses para alimentar a besta.  E num certo momento, o herói Teseu se apresenta voluntariamente para eliminar o monstro. Até esse ponto, o conto guarda semelhanças com a narrativa original, mas o diferencial fica com os diálogos entre os personagens.

Ariadne, filha de Minos e irmã do Minotauro, é relutante em perder o irmão com o qual pouco se relacionou e é ressentida com o pai pelo aprisionamento que considera injusto. O diálogo inicial entre os dois discorre sobre os sentimentos de amargura de ambos, a irmã pelo irmão aprisionado e pelos jovens que irão morrer no labirinto, e o rei pela traição da esposa.

Na segunda parte, quando somos apresentados a Teseu, este vem em busca de suas glórias como herói, ao ser o matador do último dos monstros. Como premio por sua valentia, caso conseguisse matar o monstro, ele pede Ariadne. A jovem então fica dividida entre seu amor fraternal e o romântico, mas opta pelo último ao fornecer a Teseu o meio pelo qual sair do labirinto.

O ápice da trama se desenrola quando o herói encontra o monstro, e este não é nada do que se havia imaginado. No diálogo, o Minotauro expõe com clareza e sensibilidade seu único desejo: a liberdade.

O autor trabalha de forma magistral os diálogos, trazendo as reflexões íntimas dos personagens à tona e expressando de forma objetiva (em virtude das poucas páginas), mas sem perder o encanto.

Com certeza um livro muito recomendado, porém não é a melhor expressão do trabalho de Julio Cortàzar, ficando bem distante do realismo fantástico que consagrou o autor latino-americano.

O Livro: Os Reis, de Julio Cortázar, pela Editora Civilização Brasileria.

[No Menu] – Elogio da Madrasta

cherub

Estou eu aqui sentada, pensando em uma boa maneira de começar a escrever uma resenha sobre “Elogio da Madrasta” do Mario Vargas Llosa. Mas, qual seria a maneira ideal de se abordar um livro tão pequeno, com um conteúdo aparentemente óbvio, mas que enseja tantos assuntos de forma sutil à nossa mente?

Primeiro, acho justo posicionar meu pré-conceito com relação ao livro. Eu o adquiri nas famosas promoções de R$9,90 do Submarino, sem saber ao certo seu teor, mas mais por conhecer de nome o autor e sabe-lo consagrado no meio literário. Quando a obra me chega em mãos e busco por um resumo ou resenha (pois sim, eu consulto antes de ler, e depois desse livro, consulto antes de comprar também) já não gosto do conceito que me é apresentado, por ser tratar de uma incursão do autor na literatura erótica, e como de literatura erótica já é consolidado na mente do senso comum, e que tenho para mim como fatídica, Cinquenta tons de cinza e seus semelhantes, o singelo volume da edição econômica recém adquirida foi mofar na prateleira.

Eis então a proposta do Desafio Livrada de 2016, ler algo que você não sabe por que comprou. Ora, esse sim era um título digno da categoria. Devidamente incluído, respirei fundo, engoli o pré-conceito sobre o tema, e fui me aventurar nas páginas belicosas da novela.

Em linhas gerais, o livro se trata de um garoto que é apaixonado pela nova madrasta. Até aí, sem surpresas. Mas o que se segue nas páginas, é uma descrição sobre o desenrolar deste relacionamento. E tirem as crianças da sala…

—- SPOILER ALERT —-

 

Vai haver de fato um relacionamento, mais do que platônico. No decorrer do livro, a narrativa descamba pra uma coisa carnal, e teremos sim um quê de pedofilia na história entre Fonchito, o garotinho de uns 10 anos, e a madrasta, Dona Lucrécia.

 

—- SPOILER ENDS —-

O texto é perpassado por várias figuras imagéticas e às vezes mitológicas, como a representação de um querubim, para o amor que o menino sente pela madrasta. A escrita de Llosa é impecável neste quesito. E os vários devaneios representados por Dona Lucrécia e Don Rigoberto em suas noites de amor, ganha capítulos inteiros, com descrições detalhadas até mesmo dos quadris da esposa, personificada como rainha de um império há muito extinto.

Voyerismo, pedofilia, hedonismo e perda da inocência são temas representados na obra com maestria. E a surpresa reside exatamente na perda desta inocência, pois no decorrer e findar da história, fica claro que o único realmente desperto e consciente dos atos e fatos transcorridos, é o pequeno Fonchito.

Agora, você deve estar se perguntando se gostei do livro. Digo-lhe que não sei. É de fato uma obra excelente, vistos os atributos que descrevi até aqui, mas ainda tenho a sensação que algo me escapou aos olhos e definitivamente minha vontade de reler não se encontra avivada. Então ficarei na incongruência dos sentimentos, e só posso me contentar em buscar por títulos do autor que não retomem esta temática narrativa.